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STJ fixa teses sobre agravante em contravenções de violência doméstica

Atualizado em 11/09/2025
A Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça – STJ fixou duas teses, sob o rito dos recursos repetitivos (Tema 1.333), sobre a incidência da agravante prevista no artigo 61, inciso II, alínea "f", do Código Penal – CP, nas contravenções penais praticadas no contexto de violência doméstica contra a mulher. As teses definidas deverão ser observadas pelos tribunais de todo o país na análise de casos semelhantes.
A primeira tese estabelece que a agravante incide nas contravenções cometidas no contexto de violência doméstica contra a mulher, salvo se houver previsão diversa na Lei das Contravenções Penais – LCP, por força do que dispõem seu artigo 1º e o artigo 12 do Código Penal.
Já a segunda tese define não ser possível tal aplicação para a contravenção penal de vias de fato, prevista no artigo 21 da LCP, na hipótese de incidência de seu § 2º, incluído pela Lei 14.994/2024, por força dos princípios da especialidade e da proibição de bis in idem.
De acordo com o relator do tema repetitivo, desembargador convocado Otávio de Almeida Toledo, embora o caput do artigo 61 do CP se refira expressamente a "crime", sua interpretação deve levar em consideração o artigo 12 do mesmo Código, além do artigo 1º da LCP, que permitem a aplicação das regras gerais do CP às contravenções, salvo disposição de modo diverso por lei especial.
O relator destacou que a obrigação de combater a violência contra a mulher vai além do ordenamento jurídico brasileiro; ela decorre também de normas internacionais, dada a sua importância. Conforme o desembargador, "cabe ao Poder Judiciário, ao analisar ilícitos de relevância penal (sejam eles contravenções ou crimes), quando envolverem violência contra a mulher, conferir-lhes o devido desvalor".
Além disso, segundo o relator, o entendimento quanto à aplicação da agravante do artigo 61, inciso II, alínea "f", do CP às contravenções, com ressalva às leis especiais, já faz parte da jurisprudência do STJ.
O magistrado apontou, no entanto, que a Lei 14.994/2024 trouxe importante alteração legislativa ao incluir o § 2º no artigo 21 da LCP e aumentar severamente a pena para as contravenções de vias de fato praticadas no contexto de violência de gênero. Com isso – esclareceu –, a lei especial passou a ter uma previsão diferente da regra geral codificada, excluindo a aplicação da agravante do Código Penal.
REsp 2.186.684
Agravantes
A professora Alice Bianchini, membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM, avalia a importância das teses para a proteção das vítimas. Sobre a primeira delas, ela explica:
“A agravante prevista no art. 61, II, "f", do Código Penal é aplicável às contravenções penais praticadas no contexto de violência doméstica contra a mulher, salvo se houver previsão diversa pela Lei das Contravenções Penais, por força do que dispõem seu art. 1º e o art. 12 do Código Penal. O art. 61 do CP prevê as circunstâncias agravantes. Entre elas, a que aumenta a pena quando o agente comete o crime com violência contra a mulher na forma da lei específica (II, “f”).”
Segundo Alice, a legislação utiliza o vocábulo “crime”, o que fez com que tanto na doutrina quanto em decisões de tribunais surgissem dois entendimentos: “(a) restritivo, no sentido de que a agravante somente incidiria nos casos de ocorrência de crime, e (b) ampliativo, para incluir as contravenções”.
“O STJ, na decisão mencionada, adota o segundo posicionamento, o que nos parece mais adequado. Excepcionalmente, a interpretação extensiva pode ser utilizada quando fica claro que a situação concreta se ajusta indubitavelmente ao sentido do texto legal. É a vontade da Lei que manda – não a vontade do legislador e muito menos a do intérprete”, destaca.
Alice Bianchini explica que nenhum intérprete pode ampliar o sentido do texto legal (para além do limite da vontade da lei). “Pode revelá-lo, nunca ampliá-lo em matéria penal e muito menos contra o réu.”
“Isso porque, na interpretação, há que se buscar o verdadeiro sentido da lei. Nessa busca, a interpretação pode não favorecer o réu, sempre que a interpretação restrita se converta em um escândalo por sua notória irracionalidade”, pontua.
De acordo com a especialista, o princípio in dubio pro reo deve ser sempre respeitado quando se está em jogo questões probatórias (fatos) não as questões de direito (interpretação da lei penal), salvo, neste último caso, quando se trata de dúvida insuperável.
“Resta, então, investigar: trata-se de uma dúvida insuperável saber se pelo espírito da Lei Maria da Penha a intenção do legislador era de não fazer incidir as agravantes para as contravenções penais praticadas nos contextos previstos no seu art. 5º (violência doméstica, familiar ou relação íntima de afeto)?” questiona
Na visão da professora, o entendimento que melhor representa os fins sociais da Lei Maria da Penha e, especialmente, as condições peculiares das mulheres em situação de violência doméstica e familiar é o que inclui no âmbito do art. 61, II, “f” as contravenções penais. “Assim, em tal dispositivo legal, o vocábulo crime, deve ser interpretado como infração penal (inclui contravenções penais e crimes).”
Contravenção
Sobre a segunda tese, Alice Bianchini esclarece não ser possível tal aplicação para a contravenção penal de vias de fato, prevista no art. 21 da Lei das Contravenções Penais, na hipótese de incidência de seu § 2º, incluído pela Lei n. 14.994/2024, por força dos princípios da especialidade e da proibição de bis in idem.
“O art. 21, § 2º da Lei de Contravenções Penais, citado na tese 2, e que sofreu alteração pela Lei 14.994/2024 (Pacote antifeminicidio) encontra-se assim redigido:
Vias de fato
Art. 21. Praticar vias de fato contra alguém:
[...]
§ 2º Se a contravenção é praticada contra a mulher por razões da condição do sexo feminino, nos termos do § 1º do art. 121-A do Decreto-Lei 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), aplica-se a pena em triplo. (Incluído pela Lei 14.994/2024)”
Conforme a segunda tese, avalia a especialista, as circunstâncias agravantes previstas no mencionado art. 61, II, “f”, não incidem na contravenção de vias de fato prevista no § 2º do art. 21 da Lei de Contravenção, sob pena de constituir um bis in idem. “A circunstância que agravaria a pena (“com violência contra a mulher na forma da lei específica”) já se encontra contemplada no tipo penal.”
“Pelo princípio da proibição do bis in idem, uma mesma circunstância não pode ser valorada duas vezes. Entre tantos momentos de incidência do princípio, um deles refere-se à aplicação da pena, fazendo surgir a regra de que quando as agravantes (ou atenuantes) “constituem ou qualificam o crime” não incidem de modo algum (pois do contrário daria bis in idem). Assim, quando a agravante faz parte da descrição típica do delito não pode ser valorada como tal. Do contrário, repita-se, haveria bis in idem”, pondera.
Efetividade
De acordo com Alice Bianchini, o STJ, nos últimos anos, tem sido responsável por avanços significativos em prol de uma interpretação da Lei Maria da Penha que cumpra com o seu objetivo de aumentar o espectro de proteção da mulher vítima de violência doméstica, familiar ou em uma relação íntima de afeto. “As duas teses giram em torno de uma agravante no caso de violência contra a mulher, e é importante comunicar para a sociedade o grau de reprovação de tal conduta.”
Ela reconhece avanços na interpretação da LMP, “principalmente a partir do momento em que a Corte passa, com mais frequência, a fundamentar suas razões de decidir em documentos internacionais de direitos humanos (Convenção de Belém, Convenção CEDAW etc.)”.
E acrescenta: “Constitui um outro importante exemplo o Tema Repetitivo 1249, no qual ficou decidido, entre outras coisas, que a medida protetiva de urgência não possui prazo determinado e elas vigorarão enquanto subsistir a situação de risco, assim como a natureza jurídica delas não é criminal”.
O grande desafio, segundo ela, é aplicar as teses construídas no STJ nos Tribunais de origem e pelos magistrados e magistradas. “Sabemos as dificuldades de os casos chegarem até o STJ para uma eventual alteração do decidido anteriormente, bem como o tempo elevado de demora no julgamento, o que causa um enorme prejuízo às mulheres vítimas, comprometendo o seu direito a uma vida sem violência.”
Outro grande desafio, complementa a especialista, é efetivar a Lei Maria da Penha em sua totalidade, “o que exige um comprometimento com o orçamento sensível ao gênero”. Neste sentido, ela cita Adélia Pessoa, presidente da Comissão de Gênero e Violência Doméstica do IBDFAM: “o lugar da mulher é no orçamento”.
Por Débora Anunciação
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